O coronavírus e a revisão contratual

O novo Coronavírus, Covid-19, declarado em 11/03/2020 como pandemia pela OMS[1], além do risco iminente à saúde das pessoas trouxe consigo uma turbulência inimaginável nas relações contratuais, tornando imperiosa a abordagem da possibilidade da revisão contratual.

Através da MP 921[2], o Governo Brasileiro considerou a necessidade de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional. Ainda, através do Decreto Legislativo nº 6[3] de 2020, o Congresso Nacional reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública.

No atual momento as repercussões contratuais começam a sair do campo das hipóteses para a realidade nas relações jurídicas negociais. Em suma, grandes desafios ainda estarão por vir quanto ao enfrentamento desta tão delicada situação.

Assim, como era de se esperar em tempos de crise, alguns contratos começam a ser descumpridos, com sério risco de uma verdadeira celeuma jurídica. Até porque, esse descumprimento, em tese, independe da vontade das partes para a inexecução do acordado.

O fechamento do comércio, de unidades fabris e o adiamento de eventos são alguns dos reflexos da pandemia do coronavírus sobre as relações negociais. Por outro lado, os especialistas econômicos alertam até mesmo para uma provável recessão mundial como consequência.

Parametrizando a atual posição do governo com o Código Civil, percebemos que este autoriza a revisão contratual que, no entanto, deve ser analisada caso a caso. Em suma, deve-se atentar para a natureza do contrato e observar fatores como imprevisibilidade, circunstâncias fortuitas e/ou de força maior, função social e bem estar.

Assim, no campo do Direito Privado faremos uma breve exposição das ferramentas disponíveis para tratar as questões como extinção, resolução ou revisão contratual.

Argumentos para a revisão contratual.

O caso fortuito e a força maior.

O caso fortuito, que retrata evento totalmente imprevisível, bem como a força maior, que trata de evento previsível, porém inevitável, estão previstos no art. 393 do Código Civil[4]. A pandemia de coronavírus pode claramente ser reconhecida como um típico caso de força maior. Deste modo o devedor não responde pelos prejuízos daí decorrentes, salvo se expressamente, em contrato, não se houver por eles responsabilizado.

Imprevisão e onerosidade excessiva.

Temos ainda a possibilidade de resolução ou revisão contratual ante a imprevisão ou onerosidade excessiva, consoante disposição contida nos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Deve se observar a necessidade de demonstração de onerosidade excessiva + fato superveniente imprevisível causador do desequilíbrio contratual, nesse caso a pandemia de Coronavírus. Já no que concerne aos contratos de consumo fica dispensada a demonstração da imprevisibilidade, ante a previsão contida no inc. V do art. 6º da Lei 8.078/1990[5].

Impossibilidade na prestação independentemente de culpa e sem a responsabilização por perdas e danos.

Da mesma forma verifica-se a possibilidade de resolução ou extinção do contrato, independente de culpa, sem a imputação de perdas e danos causados pela extinção do negócio. Fundamentos previsto nos arts. 234, 248 e 250 do Código Civil.

Exceção de contrato não cumprido.

A exceção de contrato não cumprido tem sua previsão contida no art. 476 do Código Civil, que prevê deveres proporcionais para ambos os pactuantes, não podendo uma parte exigir que a outra cumpra com a sua obrigação se não cumprir com a própria.

Do mesmo modo, na hipótese de não cumprimento por ambas as partes daquilo que foi pactuado, a extinção e resolução do contrato se dará em uma demanda judicial, por se tratar de cláusula resolutiva tácita (segunda parte do art. 474 do CC).

Igualmente, é cabível ainda em caso de iminência de descumprimento por uma das partes, conforme inteligência do art. 477 do Código Civil. Nesta hipótese é possível exigir o cumprimento antecipado ou garantias prévias, sob pena de resolução. Nesse sentido é possível até mesmo a suspensão do contrato até que as exigências normativas sejam atendidas (Enunciado n. 438 da V Jornada de Direito Civil).  Igualmente, em caso de iminente descumprimento contratual, ver o Enunciado n. 437 da V Jornada de Direito Civil.

A frustração do fim da causa do contrato.

Por fim, a frustração do fim da causa do contrato, consoante o Enunciado n. 166 da III Jornada de Direito Civil, tem respaldo no art. 421 do Código Civil, a despeito da não adoção expressa da teoria da causa do contrato. Se por motivo estranho à vontade das partes o contrato perder sua finalidade, deverá ser extinto, sem perdas e danos.

Argumentos para manutenção dos contratos.

Prosseguindo, em sentido contrário à possibilidade de revisão contratual temos os principais argumentos para manutenção do pactuado:

  • Boa-fé objetiva, princípio contratual moderno, fundamentado nos arts. 113, 187, 422, 765 do Código Civil, além de outras previsões legais. Nessa esteira, a Lei da Liberdade Econômica[6] prevê em seu art. 3º, incisos V e VIII, a valorização da boa-fé.
  • Da mesma forma, a Função Social do Contrato, busca garantir não haver lesões a interesses difusos e coletivos. Igualmente, tampouco cause prejuízos a terceiros, no caso de consumidores, além de não ofender valores ambientais, bem como à concorrência.
  • Prosseguindo, percebe-se que este princípio cuida da abordagem dos reflexos da relação contratual sobre a sociedade. Nesse sentido o art. 421 do Código Civil preceitua a limitação da liberdade contratual pela função social do contrato. Assim como atenta ainda para mínima intervenção e a excepcionalidade da revisão contratual. Não menos importante é o que preceitua o parágrafo único do art. 2.035 do mesmo Codex.  Por fim, resta claro que este princípio pode ser invocado tanto para a manutenção como para a extinção do contrato.
  • Princípio da Força Obrigatória dos Contratos (pacta sunt servanda), previsto na Lei da Liberdade Econômica, ressaltando o art. 2º. Nesse sentido valoriza a liberdade como princípio inerente à garantia no exercício das atividades econômicas.
  • Princípio da Intervenção Mínima do Estado, esculpido no parágrafo único do art. 421 do Código Civil e inserido pela mencionada Lei da Liberdade Econômica. Assim como mencionado no parágrafo anterior, prioriza a mínima intervenção e a excepcionalidade da revisão contratual.

Regras e consequências do inadimplemento.

Prosseguindo nos argumentos para a manutenção do contratado, temos as regras e consequências do inadimplemento. Bom que se diga, essa previsão está contida nos arts. 389, 390, 391, 394 e 396 do Código Civil. Ademais, poderão surgir outras consequências jurídicas, como juros e incidência de cláusula penal. Do mesmo modo, merece atenção o quanto previsto no art. 475 do mesmo Diploma Legal, com todos os seus efeitos. Merece ressalva ainda os mecanismos de tutela previstos no Código de Processo Civil, como fixação de multa diária ou astreintes, que poderão trazer graves consequências.

Conclusão

Colocados os argumentos prós e contras à revisão contratual, nos resta analisar a melhor solução para os contratos diante da pandemia enfrentada.

Nos parece que a generalização da intervenção estatal sobre os contratos não é a solução mais adequada, ainda que em momentos de crise como a que estamos passando. Entretanto, diante da situação enfrentada até que seria de bom grado a edição de leis emergenciais para alguns casos pontuais. Contudo, sem incorrer na preocupante generalização.

No entanto, para aqueles que sofreram com a intervenção estatal para cessar suas atividades por conta da pandemia de Coronavírus, a revisão contratual é inevitável. Nesse sentido, pode-se verificar até mesmo a impossibilidade da prestação.

O fato de não haver ato normativo proibindo o funcionamento ou as atividades comerciais, não desqualifica à revisão contratual aqueles que viram seu faturamento despencar com a pandemia.

Mas o fator preponderante neste momento é o bom senso entre as partes, no sentido de não se verem como litigantes, mas juntamente buscarem o equilíbrio ou o reequilíbrio nas relações contratuais. Logo, utilizando de bom senso, um pouco de solidariedade, valorando sim a boa-fé objetiva, observando a função social do contrato e buscando o equilíbrio econômico é possível alcançar a justiça e igualdade.

Autor: Samuel Junqueira de Oliveira, advogado titular da Junqueira Advocacia Empresarial.

[1] https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv921.htm

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm

[6] Lei 13.874/2019